Hoje
de manhã minha esposa virou-se para mim e disse: “Ficou boa sua coluna, mas
você não falou nada sobre o filme” “Quê filme?” indaguei, e ela “Ora! O tal do
Acossado...” e ela tinha razão. Para falar de forma e conteúdo, nada mais óbvio
que citar Jean-Luc Godard, mas realmente eu me esqueci de criar uma conexão
com o assunto tratado.
Erro
que eu pretendo corrigir agora.
Analisar
a obra de estréia deste polêmico e controverso realizador francês é uma epopéia
árdua. Para fazer um paralelo, seria o mesmo que dar diversos blocos de Lego
para Oscar Niemeyer e dizer: “Esqueça as leis da física ou a lógica matemática.
Faça o que quiser, a gente dá um jeito de construir”. É isso. Godard parece uma
criança em um playground.
Recebeu
financiamento para realizar um filme da maneira como lhe conviesse. E o quê ele
queria? Brincar com os dogmas do cinema. Em especial os desenvolvidos por
décadas dentro do studio system
norte-americano.
A
história é um fiapo onde a linguagem abordada irá criar sua lógica de conteúdo.
Tudo se passa na França. Um golpista rouba um carro e durante o ato acaba
matando um policial. Passa a ser perseguido. Ruma para Paris onde procura um
amigo que lhe deve dinheiro. Sua intenção é receber o dinheiro e fugir para
Roma. Uma vez na capital francesa, encontra uma norte-americana com quem teve
um caso algumas semanas antes e tenta convencê-la a partir para a Itália com
ele.
Pois
bem, o festival da ironia e do sarcasmo tem início.
Primeiro,
a dupla de protagonistas. A arrogância européia, por serem considerados o berço
da civilização ocidental e a base de todas as formas de arte, sucumbe. Michel
Poiccard, o golpista francês, é um estúpido e iletrado vagabundo que passa a
maior parte do tempo disparando asneiras e frases desconexas. Patricia
Franchini, a moça norte-americana, é uma rebelde feminista, idealista, fã da
literatura clássica que procura sua independência financeira escrevendo artigos
relevantes para grandes veículos de comunicação. Em um curioso momento ela
pergunta se ele conhece Faulkner e sua resposta é “Por quê? Você já dormiu com
ele?”
Mas
Godard vai além.
A
abordagem, a forma, a quebra da estética visual é a parte mais importante.
Existe
uma curiosa regra clássica no cinema norte-americano que a ordem de comando é a
continuidade. De um corte para o outro, o cigarro deve permanecer do mesmo
tamanho e a quantidade de bebida em um copo também. Pois bem. Ocorrem longos
lapsos de tempo (um corte, aqui, pode significar 10, 20, 90 minutos) e o
cigarro mantém-se do mesmo tamanho. Em uma hora e meia de filme, Michel fuma
dez, talvez doze cigarros em sequência. O filme, no entanto, não passa em tempo
real, percorre, pelo menos, três dias e duas noites. Ou seja, ele acende um
cigarro de manhã, cortamos para o final da tarde e o cigarro mantêm seu
tamanho. A brincadeira se estende para os campos do clímax e da tensão. Após quase
vinte minutos de conversa sobre uma suposta noite de sexo, imagina-se que o
filme fará a introdução necessária quando os dois amantes, afinal, consumarem o
ato. Pois bem, entre um diálogo e outro, ocorre um corte brusco e ele diz: “Foi
bom pra você?” Feito. Os dois, afinal, consumaram. Nós só não fomos
informados nem quando e nem como.
O
momento em que Michel assassina o policial é particularmente cômico. Mal dá
para entender a sequência dos atos. A ação anti-dramática é feita de tal forma que
impossibilita a interpretação da construção narrativa e em que momento algo de real
importância ocorre. A trilha sonora intensifica o jogo. Michel compra um jornal
e uma trilha impetuosa, agressiva, estridente surge. Mas não há uma razão sequer em
cena que peça qualquer referência deste porte. Afinal, não está acontecendo
absolutamente nada.
Poderíamos
passar horas identificando cada sequência, cada corte, cada pincelada.
Talvez
o filme não seja tão interessante para o público que não procura rebeldia
narrativa, mas apenas uma boa história. A observação surge do fato de que, após
o sucesso de Acossado (à bout de souffle), Godard continuou sua
saga à procura de novas linguagens e de regras a serem ignoradas. Sua espontaneidade,
no entanto, possivelmente nunca foi a mesma. Existe um grupo de artistas, seja
no mundo do cinema, da música, ou onde for, que alcança seu esplendor no
início. Posteriormente ele correu diversos riscos, mas a aceitação do público
certamente deixou uma voz ao fundo lhe dando novas indicações.
Em um momento sublime, Patricia faz uma pergunta a um escritor durante uma coletiva de imprensa: "Qual seria sua maior realização em vida?" Ele responde: "Me tornar imortal e então morrer".
Esta frase diz tudo.
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