14 de junho de 2012

HUGO


“Venham sonhar comigo”.

Esta frase dita por Ben Kingsley no papel de Georges Méliès não conclui A Invenção de Hugo Cabret (Hugo), mas capta sua essência. O cinema, antes de mais nada, é uma jornada em busca do fantástico.

Méliès foi o primeiro realizador a perceber este fato. Somos todos contadores de história. O que o difere dos demais, é a abordagem e o toque pessoal. Centenas (talvez milhares) de cineastas aprenderam esta lição.

Hoje, 116 anos após o surgimento de seu primeiro filme, nada mudou. Ou melhor, tudo mudou, mas a essência permanece. As regras foram modificadas, não os princípios. O cinema continua sendo a arte de contar uma história. “24 mentiras por segundo a serviço da verdade”, como bem definiu Michael Haneke.

A Invenção de Hugo Cabret é uma sensível homenagem à sétima arte e também a um de seus maiores realizadores. Somente neste universo é possível compreender como o homem por trás de Taxi Driver (idem), Touro Indomável (raging bull) e Os Bons Companheiros (goodfellas) é capaz de inserir em sua extensa obra uma fábula infantil.

Martin Scorsese é um grande observador. Ao contrário do deslize ocorrido em Gangues de Nova Iorque (gangs of New York), aqui o casamento entre fotografia, direção de arte, figurino, maquiagem e efeitos visuais, realmente respeita a frase “até que a morte os separe”. Vai além, pois os grandes filmes não morrem, apenas amadurecem.

Hugo é um garoto que vive em uma estação de trem em Paris na primeira metade do século XX. Órfão e esquecido pelo tio que prometeu ficar ao seu lado, caminha pelas tubulações do local mantendo os mecanismos em ordem para que ninguém suspeite de sua presença e o mande a um orfanato. Guarda, em seu pequeno e improvisado cubículo, um estranho autômato que, supostamente, deveria escrever, quando funcionando. Hugo passa seus dias procurando a solução para ativá-lo, pois acredita que seu pai, antes de falecer, lhe deixou uma mensagem secreta neste estranho objeto. O garoto consegue consertar o autômato, mas precisa de uma chave em forma de coração para que ele funcione corretamente.

A história tem início.

Na verdade, o boneco simboliza o próprio Georges Méliès, abandonado em uma velha loja de brinquedos. Ele, como um objeto defeituoso, necessita de uma chave que reative seu próprio coração. A história deste cineasta é bastante triste. Esquecido após a primeira guerra mundial, tombou diante do alcoolismo e precisou vender seus filmes para poder pagar diversas dívidas. Estes filmes foram derretidos e transformados em saltos de sapatos femininos. A humanidade, literalmente, passou a pisar em sua obra. Somente ao final de sua vida ele foi relembrado e recebeu os devidos méritos.

Scorsese, de maneira bastante respeitosa, ignora os problemas com o álcool e decide passar ao espectador a imagem do artista. A beleza das cenas às vezes não procura uma conexão direta com a história. O cinema, afinal, pode ser apenas a beleza, em sua forma mais pura.

Em um determinado momento, Hugo diz a seguinte frase: “Os grandes mecanismos nunca vêm com peças sobressalentes. Sua perfeição é tanta que toda a engrenagem tem uma função essencial. Eu gosto de imaginar que o mundo é um grande mecanismo, assim eu teria uma razão para estar aqui”. Em outro, Méliès diz o que poderia ser seu complemento: “Eu construí este autômato com peças que sobraram de uma de minhas invenções”.

O autômato, ao final, curou a dor de Méliès, deu um lar a Hugo e, sob pequenos aspectos, modificou a vida de todos naquela pequena estação de trem.

Imagino que, por vezes, as peças sobressalentes fiquem fora de uma grande engrenagem, pois são importantes demais para fazer parte de um todo.

Elas são um universo à parte.

Assim como é o cinema.


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